domingo, 4 de junho de 2017

Único médico em região sob fogo cruzado chega a atender 400 pacientes por dia no Sudão

Missionário americano atende uma população de 750 mil pessoas em região próxima à fronteira com Sudão do Sul e faz cerca de mil cirurgias por ano.


O médico Tom Catena lembra de um "dia típico" nas montanhas Nuba, no Sudão, quando ele desejou, por um momento, que o velho caça das Forças Armadas sudanesas que sobrevoava a área bombardeando alvos inimigos despejasse a bomba incendiária sobre sua cabeça.

Naquela região verde esquecida pelo mundo, próxima à fronteira com o Sudão do Sul, a etnia nuba vive desde 2011 em meio ao fogo cruzado entre as forças governamentais e a guerrilha Frente Revolucionária do Sudão, que busca derrubar o presidente Omar al-Bashir, no poder desde 1978 quando liderou um golpe militar que derrubou o governo democrático do primeiro-ministro Sadiq al-Mahid.

O dia ainda estava na metade e o missionário americano, único médico para uma população de 750 mil pessoas, já havia perdido quatro pacientes, dois deles crianças.

"Olhei pra cima e falei: jogue esta bomba em cima de mim. Porque esta dor é demais. É a dor mais excruciante que você pode imaginar. Ver seus pacientes morrerem é a parte mais difícil do meu trabalho".

'Dia típico'

Por acreditar que nenhuma palavra consegue traduzir o sentimento, Catena pede que imaginemos esse dia que ele descreve como comum no hospital Mother of Mercy, onde podem chegar a ser atendidos 400 pacientes em um só dia.

"Você vai à pediatria e uma criança com queimaduras de terceiro grau em 60% do corpo, causadas dias antes por uma bomba incendiária, morre em seus braços. Depois você vai à área feminina, onde uma mulher com câncer de mama em fase terminal morre ao lado de outra paciente a quem você teve que amputar uma perna por ter pisado em uma mina terrestre. Você vai à maternidade e uma grávida com toxemia e pré-eclâmpsia tem uma convulsão e morre ao dar à luz. Você vai à área masculina e um dos soldados que você operou um dia antes morre. E você senta lá e tenta explicar à família o que aconteceu. Aí você sai e, em frente à tenda que instalamos para tratar os pacientes de uma epidemia de sarampo, você vê uma mãe gritando, rolando no chão, chorando porque seu bebê acaba de morrer de sarampo."

Ele fala rápido, olhando para o chão por trás dos óculos redondos, como se seguisse o ritmo de suas rondas no hospital.




"A essa altura, você sente que toda a tristeza e dor do mundo pesam sobre a tua cabeça, apertam o teu peito e você não consegue nem respirar. O impacto psicológico é tão grande que a dor se torna física."

Ainda assim, a vontade de desistir, ele assegura, não dura mais que poucos minutos, e é espantada pelo sorriso de um garoto que se aproxima com uma bola chamando o médico para brincar ou pelo agradecimento de uma mulher que carrega nos braços o filho amputado.

"São coisas simples que me fazem resistir, como um velho que te diz: 'doutor, por favor, não nos abandone'. Aí você recobra lentamente os sentidos e percebe que é a única esperança para essas pessoas que foram traumatizadas, derrubadas, oprimidas por séculos."

Missão

Aos 53 anos, Doutor Tom, como é chamado pelos locais, é um homem de aparência frágil, mas juvenil, sorriso fácil e abraços efusivos, que se formou em Medicina graças a uma bolsa da Marinha americana e a um profundo desejo de servir aos outros.

"É realmente a minha fé que me move. Sempre fui muito inspirado por São Francisco de Assis. Queria viver uma vida simples, dedicada a ajudar", conta ele, que se define como católico fervoroso.

Originário da cidade de Amsterdam, Estado de Nova York, ele chegou às montanhas Nuba há nove anos, depois de seis no Quênia, escolhido por ser um lugar "onde havia uma imensa necessidade de médicos".

No Sudão, alguns de seus pacientes precisam caminhar sete dias para chegar ao hospital Mother of Mercy, o mais próximo de onde vivem.

O estabelecimento atende a todos gratuitamente e independente de religião ou implicação no conflito armado - os nuba se dividem entre católicos, muçulmanos e uns poucos animistas.




Em 2011, quando o governo de Cartum cercou as montanhas Nuba, proibiu o acesso de ajuda humanitária e deu início aos bombardeios. As poucas organizações internacionais que atuavam na área desertaram, levando consigo médicos, anestesistas e enfermeiros.

Catena e duas freiras católicas sudanesas foram os únicos a permanecer.

"Nunca me arrependi dessa decisão. Não podia abandonar essa gente no momento em que mais precisavam de mim. Se eu fizesse isso, significaria que a minha vida é mais importante que a deles. E não concordo com essa ideia", afirma.

Bombas

Hoje ele conta com uma equipe de 60 enfermeiros locais, entre eles dois anestesistas e alguns menores de idade "com formação ainda insuficiente".

Para dar conta dos pacientes, Catena vive no hospital e não contabiliza as horas trabalhadas. Estima realizar mil cirurgias em um ano.

Faltam equipamentos, a eletricidade depende de um gerador e de painéis solares, a água vem de poços artesanais, e os medicamentos têm que ser adquiridos em Uganda ou Quênia e levados ao hospital clandestinamente, em operações logísticas complicadas e caras.

Usando às vezes "métodos da época da guerra civil", ele trata tanto traumas de guerra como casos de pneumonia, malária, desnutrição, epidemias de lepra e sarampo ou câncer.



Mas o pior, Catena afirma, são os bombardeios. O hospital já foi diretamente visado duas vezes. Nessas ocasiões, médico, enfermeiros e pacientes que conseguem andar se amontoam em buracos cavados no chão de terra batida ao redor do local, a única proteção contra as bombas das tropas do governo. Reconhecer os ruídos que vêm do céu é questão de sobrevivência.

"Escuto os aviões circulando sobre nossas cabeças e penso: 'será que não sabem que há gente aqui embaixo?'. Mas a verdade é que há uma diferença de valor. Há um grupo que pensa que sua vida é mais importante que a de outros."

Crimes de guerra

"É uma estratégia nojenta. Quando você bombardeia um hospital realmente se desmoraliza as pessoas. Não se trata só de vidas perdidas, estruturas destruídas. Os efeitos psicológicos são completamente devastadores. É uma guerra psicológica contra a população."

Omar al-Bashir é buscado desde 2009 pelo Tribunal Penal Internacional (TPI), que o acusa de crimes de guerra e crimes contra a humanidade na região sudanesa de Darfur, palco de uma intensa guerra civil em que, segundo algumas estimativas, podem ter morrido até 400 mil pessoas e levou à divisão do país com a criação do Sudão do Sul, em 2005. O TPI rejeitou as acusaçoes de genocídio que eram feitas contra al-Bashir.

Em seu hospital, o doutor Tom Catena fotografa e registra metodicamente todos os casos de trauma de guerra tratados e indícios da violência cometida contra os civis nuba, na esperança de que um dia Bashir também seja responsabilizado pelo que ocorre nessa outra região do Sudão.

Além dos tiroteios, minas terrestres, bombas incendiárias e de fragmentação, a população nuba, que subsiste da agricultura familiar, também enfrenta a fome.

"Ao lançar bombas incendiárias sobre as terras que (os nuba) estão tentando cultivar, o governo destrói toda a possibilidade que eles têm de subsistir. Não há o que comer. Você entra em um mercado e vê, literalmente, um pernil de ovelha, nada mais", explica Catena.



O rosto marcado, os braços finos e o andar hesitante do médico poderiam confirmar suas palavras.

Futuro

Nos últimos seis meses a situação tem estado mais calma graças a uma trégua acordada entre governo e rebeldes. Mas o missionário americano considera a situação frágil e que o conflito pode recomeçar a qualquer momento.

Ainda assim, continua ignorando os pedidos de seus seis irmãos para que volte aos Estados Unidos. Há pouco mais de um ano, Catena se casou com uma nuba e deseja ter filhos em breve, algo "muito importante" na cultura de sua esposa.

"Não tenho nenhum interesse em ir embora enquanto as coisas não se estabilizarem", afirma.

Com o apoio de organizações católicas que financiam o hospital Mother of Mercy, Catena começou a formar médicos e enfermeiros locais, com o objetivo de que possam gradualmente ocupar seu papel e permitir que ele busque outro destino "onde precisarão mais" de sua ajuda.



O primeiro médico nuba deve se formar no Quênia em um ano e um outro está no segundo ano da faculdade de Medicina em Uganda.

"Estamos treinando muita gente. Há dez pessoas em escola de enfermagem, seis em clínica geral. Espero e rezo para que esses caras voltem e venham com disposição e dedicação, para que possamos realmente começar a melhorar a atenção médica na região, com a população nuba treinando outros nuba. O objetivo é que os locais passem a administrar o hospital", explica.

Quando isso for possível, seu sonho é tornar-se "obsoleto, velho" e "viver às custas" de sua esposa, ele ri.

O trabalho de Catena foi reconhecido neste ano com o Prêmio Aurora pelo Despertar Humanitário, entregue em 28 de maio em Erevan (Armênia).